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A inteligência emocional não é suficiente sem uma base ética. Na busca de uma aspiração elevada e altruísta, trabalhar diariamente nossa intenção nos ajuda nesse sentido, porque exclui o que não está alinhado a nossos valores. É importante olhar para o que surge de dentro para fora e adotar uma prática frequente de questionamento – nossa agenda reflete nossas preferências? Está coerente com nossos valores? Temos o hábito de revisitar nossos propósitos? Como isso reflete no nosso entorno (família, colegas de trabalho, amigos etc)? Conseguimos entender quais impactos que nossas atitudes e decisões geram nas outras pessoas e em nós?

Se realizado de forma constante e honesta, esse exercício nos permitirá cultivar uma atenção maior à felicidade e ao sofrimento que engendramos por meio dos nossos atos, de nossas palavras e de nossos pensamentos. Para Matthieu Ricard*, “existem aqui dois fatores determinantes: a motivação e as consequências dos nossos atos (…) Sempre temos a escolha de adotar uma motivação altruísta e de nos empenharmos para ajudar a criar um resultado positivo. Dessa maneira, é preciso examinar incessantemente a nossa motivação, como diz o Dalai Lama: “Estamos agindo com a mente aberta ou com uma mente pequena? Levamos em consideração a situação geral ou estamos vendo somente algumas especificidades? Vemos as coisas a curto ou a longo prazo? […] A nossa motivação é genuinamente compassiva? […] A nossa compaixão está limitada apenas às nossas famílias, aos nossos amigos e àqueles com quem nos identificamos? […]. O núcleo essencial da ética é, portanto, o nosso estado mental e não a forma que tomam as nossas ações”.

Ética, aspiração, propósito, valores. Não há consenso sobre esses conceitos num mundo multicultural, subjetivo, líquido e flutuante como o nosso. Temos responsabilizado as redes sociais, as crises globais, o descaso pela educação, os líderes. Mas isso sempre aconteceu, em várias sociedades e em diversos contextos. Há muitos exemplos nas mitologias, nas religiões, nas sociedades medievais – sempre houve situações conflituosas que testavam e questionavam os limites da ética e valores como lealdade e honestidade. Nesses histórias e narrativas, modernas ou antigas, a inteligência emocional está presente, mas muitas vezes inserida num contexto de manipulação, controle e abuso.

Os cientistas têm se interessado por esse uso não-ético da inteligência emocional. Um estudo de 2013 revelou que aqueles que tendiam a explorar os outros para ganho pessoal também eram bons em ler as emoções, especialmente as negativas. Uma pesquisa de 2011 indicou – pessoas que têm mais consciência de como regular as emoções e que mostram uma tendência a manipular os outros para ganho pessoal são mais propensas a se engajar em ações desviantes, como envergonhar publicamente alguém no trabalho.

Em 2010, um grupo de cientistas descobriu que indivíduos que demonstraram certos traços narcísicos (em essência, um padrão generalizado de grandiosidade, autofoco e auto-importância) passaram boas impressões iniciais para seus pares, usando humor e expressões faciais encantadoras. Isso quer dizer que as pessoas movidas por interesses próprios são mais talentosas em influenciar e ganhar o apoio dos outros.

Além das constatações citadas acima, vale destacar também outros pontos observados por estudiosos e pelos profissionais da área de Saúde Mental sobre o lado não-ético da inteligência emocional, e um exemplo é o uso da empatia. Para o psicólogo Paul Gilbert, ela não implica necessariamente bondade ou altruísmo. A empatia também torna possível a tortura, ressalta Gilbert. Sem empatia, um torturador não teria nenhum conceito do sofrimento que ele está causando. Ele sabe a dor que está causando justamente porque ele é capaz de desenvolver um alto grau de empatia e tem a habilidade de “colocar-se nos sapatos de outra pessoa”.

Ser persuadido, motivado e influenciado por outros pode ter um lado positivo – contanto que resulte em um comportamento consistente com nossos valores. Se isso não acontecer e se descobrirmos que fomos enganados ou manipulados, podemos tentar entender nossas vulnerabilidades daquele momento (por que deixamos a porta aberta da nossa casa para a pessoa entrar?) e procurar ferramentas para regular nossas emoções.

Com o cultivo da autocompaixão, da compaixão e com a prática da meditação e da observação, ampliamos a autoconsciência e o estado de vigilância dos nossos pensamentos e das nossas ações. Isso nos ajuda a evitar que nos tornemos escravos de nossos sentimentos, mesmo quando um manipulador habilidoso trabalha duro para explorá-los. Dessa forma, desenvolvemos e aperfeiçoamos nossa própria inteligência emocional, evitando agir de uma maneira que não seja do nosso interesse ou que esteja em conflito com nossos valores e princípios, evitando ou diminuindo episódios de arrependimento.

Matthieu Ricard nos lembra – “A ética prática deve levar em conta, com visão interior e compaixão, todos os prós e contras de uma dada situação (…) É grande a dificuldade de pô-la em prática, porque ela transcende o recurso cego e automático ao texto da lei e aos códigos morais. Portanto, também é grande o risco que corre de ser distorcida ou manipulada. De fato, essa ética requer um tipo de flexibilidade que é, em si, uma fonte de perigo. Se for cooptada pelo egoísmo e pela parcialidade, pode ser explorada para fins negativos que vão contra os seus objetivos iniciais. Daí a necessidade, para todos e em especial para aqueles que exercem a justiça, de desenvolver a sabedoria e uma profunda preocupação com o bem-estar dos outros”.

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